A Camerata Florentina
Dois dos mais
assíduos correspondentes de Mei foram Giovanni Bardi e Vincenzo Galilei. Bardi
acolhia no seu palácio de Florença, desde o início da década de 1570, uma
academia informal onde se falava de literatura, ciência e arte e onde se
executava a nova música. Um protegido de Bardi, o cantor-compositor Giulio
Caccini (1551-1618) veio mais tarde a dar-lhe o nome de camerata (clube ou círculo) de Bardi. Por alturas de 1577 as cartas
de Mei sobre a música grega estavam frequentemente na agenda da camerata. Mei chegara à conclusão de que
os Gregos conseguiam obter efeitos singulares com a música porque esta
consistia numa única melodia, quer cantada a solo, com acompanhamento, quer por
um coro. Esta melodia tinha o poder de afectar os sentimentos do ouvinte, uma
vez que explorava a expressividade natural das subidas e descidas de altura, do
registro da voz e das mudanças de ritmo e andamento.
Em 1581 Vincenzo
Galilei, pai do famoso astrónomo e físico Galilei, publicou um Dialogo della musica antica e della moderna
(Diálogo sobre a Música Antiga e Moderna), no qual, seguindo as doutrinas
de Mei, atacava a teoria e a prática do contraponto vocal, de que era exemplo o
madrigal italiano. Em resumo, a sua tese era a de que só uma única linha
melódica, com alturas de sons e ritmos apropriados, podia exprimir um dado
verso. Por conseguinte, quando várias vozes cantavam simultaneamente melodias e
letras diferentes, em registros e ritmos diferentes, a música nunca conseguia
transmitir a mensagem emotiva do texto; quando certas vozes eram graves e
outras agudas, umas ascendentes e outras descendentes, umas evoluindo em notas
lenas e outras em notas rápidas, o consequente caos de impressões
contraditórias apenas servia para exibir o engenho do compositor e a capacidade
dos executantes num estilo musical que, se algum valor tinha, só se adequava a
um conjunto instrumental. Galilei rejeitava como recursos pueris a descrição de
palavras, a imitação de suspiros e outros processos similares, tão comuns no
madrigal do século XVI. O modo correcto de musicar um texto, afirmava Galilei,
era utilizar uma melodia a solo que pusesse em relevo as inflexões naturais da
fala de um bom orador ou actor. Galilei fez algumas experiências com monódias
deste tipo, musicando alguns versos do Inferno
de Dante para tenor solo com acompanhamento de violas; esta música não se
conservou.
Foi,
provavelmente, em debates análogos aos da camerata
que Ottavio Rinuccini (1562-1621) e Jacopo Peri (1561-1633) se convenceram,
como o atestam os seus prefácios ao texto e música de L’Euridice, de que as tragédias antigas eram cantadas na íntegra.
Fizeram uma primeira tentativa sobre o poema Dafne, de Rinuccini, apresentando em Florença, no ano de 1597, com
a primeira pastorela dramática integralmente musicada. Poema mais ambicioso era
L’Euridice, também de Rinuccini, com
música de Peri e Giulio Caccini. Entretanto, o aristocrata romano Emilio de
Cavalieri (c. 1550-1602), que superintendia no teatro, nas artes e na música da
corte ducal florentina, apresentava em Florença algumas cenas mais breves num
estilo semelhante (veio mais tarde a afirmar ter sido o primeiro a fazê-lo) e
levava à cena em Roma, em fevereiro de 1600, uma peça musical sacra, La rappresentatione di anima et di corpo,
o mais longo espetáculo dramático inteiramente musical até a data.
O modo como Peri,
Caccini e Cavalieri abordavam a música teatral foi bastante semelhante. Tanto
Jacopo Peri como Giulio Caccini eram cantores profissionais e Cavalieri, uma
personagem multifacetada – diplomata, coreógrafo, compositor, e administrador
–, ensinava canto. Todos procuraram chegar a um tipo de canto intermédio entre
a recitação falada e a canção. Caccini e Cavalieri escreveram num estilo
baseado na antiga ária improvisada sobre um poema e também no madrigal. Peri
utilizou também este estilo no seu prólogo. Todavia, para os diálogos preferiu
inventar um novo estilo, que em breve veio a ser chamado stile recitativo ou estilo de
recitativo. Não se confunda esta designação com o termo monódia (de monos, um, sozinho, e aiden, cantar),
que abrange todos os estilos de canto solístico, incluindo recitativos, árias e
madrigais, cultivados nos primeiros anos do século XVII.
O canto
solístico, como é evidente, não era uma novidade. Além da prática comum de
improvisar melodias a solo sobre uma fórmula de soprano ou baixo para a
recitação de poemas épicos e das muitas canções compostas para voz solo e
alaúde, não era raro no século XVI cantarem-se madrigais polifónicos como solos
com acompanhamento instrumental; este tipo de solo era especialmente frequente
nos intermedi. Além disso, muitos dos
madrigais do século XVI eram escritos num estilo que sugere fortemente um solo
de soprano com acompanhamento de acordes. Na década de 1580 Luzzasco Luzzaschi
compôs alguns “madrigais a solo”, canções para uma, duas ou três vozes de soprano
com acompanhamento de cravo. Esta obra, eram, fundamentalmente, peças de
textura harmónica bastante sólida, com as vozes mais graves executadas
instrumentalmente e a voz ou vozes superiores ornamentadas com passagens de coloratura.
Caccini
desenvolveu um estilo melodioso, apesar de predominantemente silábico, que,
embora visando, antes de mais, uma declamação clara e flexível das palavras,
admitia determinados embelezamentos da linha melódica nos locais apropriados;
assim se introduziu na monódia um elemento de virtuosismo vocal que no século
XVI se manifestava através da improvisação de ornatos (escalas, grupetos, notas
de passagem e assim sucessivamente) sobre qualquer das notas de uma melodia,
independentemente da natureza do texto. Caccini escreveu dois tipos de canções:
as árias, que eram canções estróficas, e os madrigais, com música nova para
cada verso. Alguns remontam à década de 1590, mas só vieram a ser publicados em
1602, sob o título Le nuove musiche (A
Nova Música).
O estilo recitativo
Enquanto o
idioma dos solos vocais de Caccini se baseava na ária improvisada e no madrigal
polifónico, Peri procurou uma solução nova que respondesse às necessidades de
representação dramática. No seu prefácio a Euridice
Peri recordava a distinção que na teoria antiga se estabelecia entre a
contínua mudança da altura do som na fala e o movimento diastemático, ou por
intervalos, no canto. O seu objectivo era encontrar uma espécie de canção
falada intermédio entre ambos, como a que se dizia ter sido usada na recitação
dos poemas heroicos. Ao sustentar as notas do baixo contínuo, enquanto a voz se
movia, passando por consonâncias e dissonâncias – assim simulando o movimento
contínuo da fala –, libertou suficientemente a voz da harmonia para fazer com
que se assemelhasse a uma declamação livre e sem altura definida. Depois,
quando chegava a uma sílaba que devia ser sublinhada ou “entoada” na fala, Peri
tinha o cuidado de pôr em consonância com o baixo e a respectiva harmonia.
Os estilos de
melodia – os que se utilizavam no recitativo, na ária e no madrigal –
rapidamente alastraram a todos os tipos de música, tanto profana como sacra,
logo nos primeiros anos do século XVII. A monódia tornava possível o teatro
musical, pois era um meio através do qual podiam ser transmitido musicalmente,
quero o dialogo, quer a narração, com clareza, rapidez e com toda a liberdade e
flexibilidade necessárias a uma expressão digna desse nome. Em 1600 Peri compôs
música para a peça mitológico-pastoril em verso Euridice, de Ottavio Rinuccini, que foi nesse mesmo ano apresentada
ao público em Florença, no âmbito dos festejos do casamento de Henrique IV da
França com Maria de Médicis. Caccini fez questão de que os cantores por ele
ensinados cantasse apenas a música que escrevera; por conseguinte, cerca de um
terço da representação foi ocupada com a versão de Caccini. No ano seguinte
cada compositor publicou a sua versão, sendo estas duas partituras as primeiras
óperas completas que chegaram até nós.
Peri descreve o seu estilo recitativo
Pondo de parte todas as outras maneiras de
cantar até hoje conhecidas, dediquei-me por completo a procurar a imitação
conveniente a estes poemas. E pensei que o tipo de voz atribuído pelos antigos
ao canto, a que chamavam diastemático (que é como quem diz “sustentado e
suspenso”), podia, por vezes, ser apresentado e tomar um andamento moderado,
entre os lentos movimentos sustentados do canto e os movimentos fluentes e
rápidos da fala, assim servido o meu propósito (tal como também os antigos
adaptava a voz à leitura da poesia e dos versos heroicos), aproximando-se dessa
outra voz da conversação, a que chamavam contínua e que os modernos (embora
talvez para outros fins) usaram igualmente na sua música.
Reconheci também que na nossa fala alguns
sons são entoados de tal forma que podemos construir sobre eles uma harmonia e
que no curso da fala passamos por muitos que não são entoados deste modo até
chegarmos a um que permita o movimento para uma nova consonância. Tendo em
mente as entoações e inflexões que nos servem na tristeza e na alegria e em
estados semelhantes, fiz com que o baixo se movesse em sincronia com elas, mais
depressa ou mais devagar, segundo os afectos. Mantive o baixo fixo através de
consonâncias e dissonâncias até que a voz da personagem, tendo percorrido
várias notas, chegasse a uma sílaba que, sendo entoada na fala normal, abrisse
caminho a uma nova harmonia. Fiz tudo isto por forma que não só o fluir da fala
não ofendesse o ouvido (quase tropeçando nas notas repetidas com mais
frequentes acordes consonantes), mais ainda a voz não parece rogar o sabor do
movimento do baixo, particularmente nos temas tristes ou graves, sendo evidente
que o uso das dissonâncias atenuava ou obscurecia a vantagem adquirida com a
necessidade de entoar cada nota, o que na música antiga fosse menos necessário
para este fim.
Excerto do prefácio de Peri a Le musiche sopra l’Euridice, Florença,
1600, trad, in Palisca, Humanism in
Italian Renaissance Musical Thought, New Haven, Yale University Press,
1985, pp. 428-432.
Jacopo Peri encarnado a personagem do cantor lendário
Arion no quinto intermédio de 1589. Arion, ao regressar de uma série de
concertos em Corinto, canta uma ária de eco imediatamente antes de se lançar ao
mar para fugir à tripulação amotinada do navio. A música era do próprio Peri e
de Cristofano Malvezzi e o guarda-roupa de Bernardo Buontalenti. (GROUT;
PALISCA, 2001, p. 323)
Euridice era o conhecido mito de Orfeu e Eurídice, tratado à maneira
pastoril, então em voga, e modificado por forma a ter um final feliz, dada a
ocasião festiva para que a peça foi escrita. Das duas versões da pastorela de
Rinuccini, a de Caccini é mais melodiosa e lírica, à semelhança dos madrigais e
árias das suas Nuove musiche. A de
Peri é mais dramática; este autor não só criou um estilo situado entre a fala e
o canto, como também fez variar a sua abordagem de acordo com as exigências da
situação dramática.
Assim, Peri criou uma
linguagem que respondia às exigências da poesia dramática. Embora ele e os
companheiros soubessem que não tinham ressuscitado a música grega, conseguiram
conceber e criar uma canção falada análoga à que julgavam ter sido utilizada no
teatro antigo e que era compatível com a prática moderna.
áudio 1: Jacopo Peri - sopra l'Euridice: Prologue